Pouco antes do portão abrir, o rapaz que
vendia adesivos nos perguntou: “vocês são pai e filho?”, quando respondemos que
sim, enquanto eu procurava moedas na carteira ele emendou: “pô, que legal!
Trouxe meu filho nas outras duas vezes que ele veio pro Brasil, mas dessa vez
não deu”. Ainda nos desejou um bom show enquanto entregava os adesivos e pegava
as moedas.
Roger Waters e sua turnê “The Wall” eram o
motivo da grande fila que circulava o Morumbi no dia primeiro de abril. “Até
que não tem tantos velhos”, disse meu pai, se incluindo nessa categoria e
ficando surpreso com a quantidade de jovens presentes.
Cresci ouvindo Pink Floyd. Em casa sempre fui
“educado” com altas doses de Beatles, Rolling Stones, Queen, Led Zeppelin, Yes,
Genesis... mas quando o assunto era a banda de Waters e Gilmour a história era
outra. A empolgação que meu pai mostrava ao me explicar detalhes das músicas e
como as descobriu era fascinante.
Quando fiquei sabendo que a turnê do “The
Wall” passaria pelo Brasil, a primeira coisa que me passou pela cabeça foi:
“preciso levar meu pai”. E tudo correu bem. A data da compra do ingresso, para
ajudar, foi próxima ao seu aniversário de 62 anos. Presente garantido.
Cinco longos meses se passaram. Nesse tempo
pudemos sonhar com o impossível, relembrando a incrível e inesperada
participação especial de David Gilmour em “Confortably Numb”, quando a turnê
passou por Londres, em maio. E acompanhar relatos sobre a grandiosidade
estrutural dos shows.
Eis que chega a data do show. Em seis
pessoas, pegamos sete horas de estrada, de van, até São Paulo. Confesso que,
nos dias anteriores, tive certas dúvidas se meu pai realmente havia gostado do
presente e se estava feliz com a ida ao show, o que passou a me preocupar mais
do que qualquer outra dificuldade.
No entanto, as dúvidas se dissiparam quando
entramos no estádio. “Olha só o muro!”, disse, parecendo uma criança quando
entra em um parque de diversões. Devidamente acomodados na arquibancada azul,
pegamos lugares com ótima visibilidade do palco. O resto da nossa “caravana”
estava na pista, onde normalmente fico em shows grandes, mas resolvi comprar
arquibancada mesmo, pois apesar de toda sua disposição e saúde, não sei se os
62 anos do meu pai permitiriam encarar a pista. Depois percebi que tomei uma decisão
acertada.
Com o portão aberto às 15h, tivemos de
esperar até as 19h30 para o início do show (19h45, na verdade. Pequeno atraso).
Nesse tempo conversamos (muito), tomamos cerveja (pouco), assistimos princípios
de briga quando pessoas insistiam em ficar em pé na grade, bloqueando a visão
de quem sentava na primeira fila, e ainda deu tempo do meu pai se divertir com
as tradicionais “olas” nas arquibancadas, e se surpreender - discretamente, é
verdade – com a falta de preocupação de quem fumava um baseado enquanto
aguardava o show.
O espetáculo já começou impondo respeito.
Logo na primeira música, “In The Flesh?”, já era possível notar a qualidade
absurda do sistema de som. No final da música, uma réplica de um avião,
localizada logo acima da arquibancada em que estávamos se chocou contra uma
parte do muro, que compunha, a princípio, as laterais do palco. Waters surgiu
demonstrando alegria e vitalidade. E logo já foi ressaltado nele um defeito que
acaba se transformando em uma qualidade: ele sabe que não é um bom cantor, e
que a idade só piora a situação, mas sabe muito bem se utilizar disso no palco,
ainda compensando na performance teatral, que poderia até soar forçada, mas faz
todo sentido dentro do universo conceitual de “The Wall”.
O show apresenta o disco na íntegra e com as
músicas na ordem exata. Sendo assim, a suíte “Another Brick In The Wall”
aparece logo no início. Por mais que a música esteja “orkutizada” (para usar um
termo atual), em seus primeiros acordes o público já estava rendido. Nesse momento
notei discretas lágrimas no meu pai, o que “imitei” instantaneamente sem
perceber.
Enquanto a música percorria seus longos
minutos, um filme se passava simultaneamente na minha cabeça, lembrei da minha
infância, das histórias, da minha antiga banda... não sei dizer se foi o melhor
momento do show, mas com certeza foi o MEU melhor momento no show. O coral das
crianças de Heliópolis (que infelizmente fizeram playback, mas ainda assim foi
bonito) aumentou ainda mais a emoção. Por um instante me vi ali no meio delas,
pulando desgovernado e interagindo com o boneco gigante do professor que surgiu
no canto do palco. Me senti meio ridículo fazendo tantas relações daquele
momento com a minha vida e minha relação com meu pai, mas logo dei de ombros,
preferi aproveitar o momento, sem filtros.
Toda a beleza de “Mother” e “Goodbye Blue
Sky” antecederam as porradas “What Shall We Do Now” e “Young Lust”, quando as
projeções no muro eram tão impressionantes que as vezes esquecíamos de olhar a
banda no palco, competentíssima por sinal. 12 músicos. Muitos já acompanham
Roger Waters de longa data, incluindo seu filho, Harry Waters, tecladista. Não,
não vou tentar fazer mais uma relação entre pai e filho.
Conforme as músicas iam se sucedendo,
assistentes de palco colocavam novos tijolos, fechando o muro gradativamente.
“Don’t Leave Now”, talvez a música mais depressiva do Pink Floyd, trouxe
momentos de tensão com o vocal desesperado e desafinado de Waters. “Goodbye
Cruel World” encerra o primeiro ato com o muro totalmente fechado.
Durante o intervalo de 20 minutos (meio
broxante, diga-se de passagem) imagens de pessoas mortas em conflitos eram
projetadas no muro. Nesse tempo, procuramos cerveja, sem sucesso, os ambulantes
haviam sumido. Não comentamos muita coisa sobre a primeira parte, apenas
esperávamos o restante.
“Hey You” foi tocada com a banda totalmente
encoberta pelo muro. A sensação provocada por não vermos os músicos aliada a
tensão característica da música criaram um momento bastante interessante. Se
inserindo aos poucos a frente da muralha, Roger Waters seguiu capitaneando o
espetáculo visual.
“Confortably Numb” foi uma das mais
festejadas. Mesmo sem a presença de David Gilmour. O vocalista, Robbie Wyckoff,
dá conta do recado, mesmo tendo a voz mais grave e menos rouca que a de
Gilmour. “In The Flesh”, “Run Like Hell” e “Waiting For The
Worms” elevaram ainda mais a catarse. As projeções alucinantes reforçavam uma
espécie de comício nazista encenado pela banda.
A parte final do espetáculo foi com “The
Trial”, e toda a cena final de “The Wall”, o filme. Culminando no desabamento
do muro. Por fim, a banda toda a frente dos escombros tocando “Outside The
Wall” e finalizando a apresentação.
Com os refletores do estádio já acesos, todos
estavam ainda em estado de choque com o que haviam acabado de presenciar. Em um
lapso de consciência me questionei novamente se meu pai havia gostado. Então
perguntei em tom displicente: “E aí, gostou?”, ele me olhou por um segundo e
respondeu ironicamente: “Não, imagina!”. Em seguida me deu um abraço
desajeitado e um beijo por cima da cabeça. Pronto, naquele momento minha noite
havia se completado. Obrigado, Roger Waters! Até o próximo muro.
Um comentário:
Foi tudo isso é
Muito mais, te amo meu filho .
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